O MINISTÉRIO PÚBLICO É PARTE LEGÍTIMA PARA AJUIZAR AÇÃO DE ALIMENTOS EM PROVEITO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Marcela Cavalcante
 Olga Rodrigues

A 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu recentemente que o Ministério Público é parte legítima para ajuizar ação de alimentos em favor de menores independentemente do exercício do poder familiar pelos pais ou da existência de risco prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente ou da capacidade da Defensoria Pública de atuar em proveito dos mesmos.
No caso em questão, o Ministério Público ingressou em juízo para que o réu contribuísse com meio salário mínimo para o sustento dos filhos. Porém, no julgamento em primeira instância, o juízo extinguiu o processo sem solução de mérito, argumentando que o órgão carecia de legitimidade ativa para a propositura da ação.
O recurso julgado, em favor de duas crianças, na comarca de Livramento de Nossa Senhora (BA), foi afetado como repetitivo no STJ por sua relevância, decorrente dos milhares de ações que também discutem a problemática em todo o país.
Vale destacar que no STJ não havia consenso sobre esta questão. Segundo o relator do recurso, ministro Luis Felipe Salomão, alguns precedentes eram no sentido de haver legitimidade do MP sempre; outros afastavam essa legitimidade quando a criança ou o adolescente se encontrava em poder dos pais; e outros precedentes eram favoráveis à atuação do MP desde que o menor se achasse em situação de risco.
Para o relator do recurso, os precedentes que negavam a legitimidade do MP entendiam que o artigo 201, inciso II do Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo o qual compete ao MP:“promover e acompanhar as ações de alimentos e os procedimentos de suspensão e destituição do pátrio poder  familiar, nomeação e remoção de tutores, curadores e guardiães, bem como oficiar em todos os demais procedimentos da competência da Justiça da Infância e da Juventude,  só se aplicaria nas hipóteses do artigo 98 do ECA, pelo qual “as medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados: I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;III - em razão de sua conduta.
No entanto, o ministro Luis Felipe Salomão defende que a solução da matéria não pode se restringir à interpretação dos mencionados artigos porque envolve atribuições de um órgão que ocupa posição estrutural no estado e porque se trata da tutela de interesses de “especialíssima grandeza”, com os quais se preocupou a Constituição Federal, em seu artigo 127 “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Assim, a legislação infraconstitucional poderá apenas aumentar o campo de atuação do MP, jamais subtrair atribuições já existentes, visto que é da própria Constituição, em seu artigo 227, caput, que se extrai a competência do órgão para atuar em favor dos menores, quando consagra que é dever da família, da sociedade e do estado assegurar à criança e ao adolescente, “com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."
Essa decisão nos parece a aplicação prática dos ensinamentos de Cristiano Chaves de Farias, no interessante e bem embasado “A legitimidade do Ministério Público para a ação de alimentos: uma conclusão constitucional” (FARIAS, Cristiano Chaves de; ALVES, Leonardo Barreto Moreira Alves; ROSENVALD, Nelson (orgs.) Temas atuais do Ministério Público. 3 ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2012. p. 589-605):
"Negar a legitimidade ministerial para ação de alimentos, ainda, significaria agravar, ainda mais, o (já) difícil acesso à Justiça daquelas pessoas mais carentes e cujos direitos são mais vulnerados.
[...]
Neste panorama surge a importância da atuação do Ministério Público como instituição voltada para uma finalidade social, tendo relevante papel na salvaguarda de direitos da população, especialmente quando se tratar de direitos indisponíveis. Dessume-se, assim, a legitimatio do Parquet para a propositura de ações diversas (obviamente enquadráveis nas latitudes de sua função de defensor de interesses sociais e individuais indisponíveis), a fim de permitir e viabilizar o acesso à justiça (que é, sem dúvida, um dos problemas maiores a serem resolvidos pelo processo civil moderno).
[...]
Desse modo, através do Parquet, uma significativa parcela de nossa sociedade (especificamente aquelas pessoas mais carentes ou aqueloutras cujos direitos indisponíveis ou coletivos – rectius, transindividuais – estejam sendo infringidos ou ameaçados de violação e que, naturalmente, teriam enorme dificuldade de pleitear perante o Judiciário) é levada à Justiça, com vistas a ter seus direitos reconhecidos e assegurados, o que gera economia de tempo (celeridade) e de despesas (sentido amplo) e imprime efetividade às disposições de lei (o que é visado preponderantemente pelo processo civil contemporâneo)." (p. 601-602)
Segue abaixo, na íntegra, a ementa com o supracitado entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZAR AÇÃO DE ALIMENTOS EM PROVEITO DE CRIANÇA OU ADOLESCENTE. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. 8/2008-STJ).
O Ministério Público tem legitimidade ativa para ajuizar ação de alimentos em proveito de criança ou adolescente, independentemente do exercício do poder familiar dos pais, ou de o infante se encontrar nas situações de risco descritas no art. 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ou de quaisquer outros questionamentos acerca da existência ou eficiência da Defensoria Pública na comarca. De fato, o art. 127 da CF traz, em seu caput, a identidade do MP, seu núcleo axiológico, sua vocação primeira, que é ser “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Ademais, nos incisos I a VIII do mesmo dispositivo, a CF indica, de forma meramente exemplificativa, as funções institucionais mínimas do MP, trazendo, no inciso IX, cláusula de abertura que permite à legislação infraconstitucional o incremento de outras atribuições, desde que compatíveis com a vocação constitucional do MP. Diante disso, já se deduz um vetor interpretativo invencível: a legislação infraconstitucional que se propuser a disciplinar funções institucionais do MP poderá apenas elastecer seu campo de atuação, mas nunca subtrair atribuições já existentes no próprio texto constitucional ou mesmo sufocar ou criar embaraços à realização de suas incumbências centrais, como a defesa dos “interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127 da CF) ou do respeito “aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia” (art. 129, II, da CF). No ponto, não há dúvida de que a defesa dos interesses de crianças e adolescentes, sobretudo no que concerne à sua subsistência e integridade, insere-se nas atribuições centrais do MP, como órgão que recebeu a incumbência constitucional de defesa dos interesses individuais indisponíveis. Nesse particular, ao se examinar os principais direitos da infância e juventude (art. 227, caput, da CF), percebe-se haver, conforme entendimento doutrinário, duas linhas principiológicas básicas bem identificadas: de um lado, vige o princípio da absoluta prioridade desses direitos; e, de outro lado, a indisponibilidade é sua nota predominante, o que torna o MP naturalmente legitimado à sua defesa. Além disso, é da própria letra da CF que se extrai esse dever que transcende a pessoa do familiar envolvido, mostrando-se eloquente que não é só da família, mas da sociedade e do Estado, o dever de assegurar à criança e ao adolescente, “com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação” (art. 227, caput), donde se extrai o interesse público e indisponível envolvido em ações direcionadas à tutela de direitos de criança e adolescente, das quais a ação de alimentos é apenas um exemplo. No mesmo sentido, a CF consagra como direitos sociais a “alimentação” e “a proteção à maternidade e à infância” (art. 6º), o que reforça entendimento doutrinário segundo o qual, em se tratando de interesses indisponíveis de crianças ou adolescentes (ainda que individuais), e mesmo de interesses coletivos ou difusos relacionados com a infância e a juventude, sua defesa sempre convirá à coletividade como um todo. Além do mais, o STF (ADI 3.463, Tribunal Pleno, DJe 6/6/2012) acolheu expressamente entendimento segundo o qual norma infraconstitucional que, por força do inciso IX do art. 129 da CF, acresça atribuições ao MP local relacionadas à defesa da criança e do adolescente, é consentânea com a vocação constitucional do Parquet. Na mesma linha, é a jurisprudência do STJ em assegurar ao MP, dada a qualidade dos interesses envolvidos, a defesa dos direitos da criança e do adolescente, independentemente de se tratar de pessoa individualizada (AgRg no REsp 1.016.847-SC, Segunda Turma, DJe 7/10/2013; e EREsp 488.427-SP, Primeira Seção, DJe 29/9/2008). Ademais, não há como diferenciar os interesses envolvidos para que apenas alguns possam ser tutelados pela atuação do MP, atribuindo-lhe legitimidade, por exemplo, em ações que busquem tratamento médico de criança e subtraindo dele a legitimidade para ações de alimentos, haja vista que tanto o direito à saúde quanto o direito à alimentação são garantidos diretamente pela CF com prioridade absoluta (art. 227, caput), de modo que o MP detém legitimidade para buscar, identicamente, a concretização, pela via judicial, de ambos. Além disso, não haveria lógica em reconhecer ao MP legitimidade para ajuizamento de ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos, ou mesmo a legitimidade recursal em ações nas quais intervém – como reiteradamente vem decidindo a jurisprudência do STJ (REsp 208.429-MG, Terceira Turma, DJ 1/10/2001; REsp 226.686-DF, Quarta Turma, DJ 10/4/2000) –, subtraindo-lhe essa legitimação para o ajuizamento de ação unicamente de alimentos, o que contrasta com o senso segundo o qual quem pode mais pode menos. De mais a mais, se corretamente compreendida a ideologia jurídica sobre a qual o ECA, a CF e demais diplomas internacionais foram erguidos, que é a doutrina da proteção integral, não se afigura acertado inferir que o art. 201, III, do ECA – segundo o qual compete ao MP promover e acompanhar as ações de alimentos e os procedimentos de suspensão e destituição do poder familiar, nomeação e remoção de tutores, curadores e guardiães, bem como oficiar em todos os demais procedimentos da competência da Justiça da Infância e da Juventude – só tenha aplicação nas hipóteses previstas no art. 98 do mesmo diploma, ou seja, quando houver violação de direitos por parte do Estado, por falta, omissão ou abuso dos pais ou em razão da conduta da criança ou adolescente, ou ainda quando não houver exercício do poder familiar. Isso porque essa solução implicaria ressurgimento do antigo paradigma superado pela doutrina da proteção integral, vigente durante o Código de Menores, que é a doutrina do menor em situação irregular. Nesse contexto, é decorrência lógica da doutrina da proteção integral o princípio da intervenção precoce, expressamente consagrado no art. 100, parágrafo único, VI, do ECA, tendo em vista que há que se antecipar a atuação do Estado exatamente para que o infante não caia no que o Código de Menores chamava situação irregular, como nas hipóteses de maus-tratos, violação extrema de direitos por parte dos pais e demais familiares. Além do mais, adotando-se a solução contrária, chegar-se-ia em um círculo vicioso: só se franqueia ao MP a legitimidade ativa se houver ofensa ou ameaça a direitos da criança ou do adolescente, conforme previsão do art. 98 do ECA. Ocorre que é exatamente mediante a ação manejada pelo MP que se investigaria a existência de ofensa ou ameaça a direitos. Vale dizer, sem ofensa não há ação, mas sem ação não se descortina eventual ofensa. Por fim, não se pode confundir a substituição processual do MP – em razão da qualidade dos direitos envolvidos, mediante a qual se pleiteia, em nome próprio, direito alheio –, com a representação processual da Defensoria Pública. Realmente, o fato de existir Defensoria Pública relativamente eficiente na comarca não se relaciona com a situação que, no mais das vezes, justifica a legitimidade do MP, que é a omissão dos pais ou responsáveis na satisfação dos direitos mínimos da criança e do adolescente, notadamente o direito à alimentação. É bem de ver que – diferentemente da substituição processual do MP – a assistência judiciária prestada pela Defensoria Pública não dispensa a manifestação de vontade do assistido ou de quem lhe faça as vezes, além de se restringir, mesmo no cenário da Justiça da Infância, aos necessitados, no termos do art. 141, § 1º, do ECA. Nessas situações, o ajuizamento da ação de alimentos continua ao alvedrio dos responsáveis pela criança ou adolescente, ficando condicionada, portanto, aos inúmeros interesses rasteiros que, frequentemente, subjazem ao relacionamento desfeito dos pais. Ademais, sabe-se que, em não raras vezes, os alimentos são pleiteados com o exclusivo propósito de atingir o ex-cônjuge, na mesma frequência em que a pessoa detentora da guarda do filho se omite no ajuizamento da demanda quando ainda remanescer esperança no restabelecimento da relação. Enquanto isso, a criança aguarda a acomodação dos interesses dos pais, que nem sempre coincidem com os seus. REsp 1.265.821-BA e REsp 1.327.471-MT, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgados em 14/5/2014.

 CONCLUSÃO: Ainda que o representante legal da criança ou adolescente (geralmente sua mãe) não promova, por algum motivo, a ação de alimentos (compreende a quantia necessária para as necessidades básicas do menor e não somente os gastos com sua alimentação), o Ministério Público possui legitimidade para ingressar com essa demanda, por se tratar de direito individual indisponível, por expressa atribuição constitucional e, ainda, como meio de garantir o acesso à Justiça.


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